Deleuze nos diz que o pensar sempre se faz a
partir de encontros, de afectos ou signos. Algo nos força, nos violenta, nos
impele a pensar. Muito foi dito sobre a boa natureza do pensamento, ou seja,
imagina-se o pensamento como algo que possui em si mesmo uma boa vontade para o
pensar. A própria tradição filosófica foi a responsável por afirmar a boa vontade
do pensamento em conhecer. Todos nós conhecemos a famosa frase de Aristóteles
no início de sua obra Metafísica:
“Todos os homens, por natureza tendem ao saber”. Esta imagem do pensamento
inaugurada pela Filosofia está presente no próprio pensar como seu pressuposto,
determinando assim toda e qualquer forma de pensamento. A imagem do pensamento
é o pano de fundo ou o pressuposto do pensar que, neste caso, em vez de revelar
a natureza violenta do pensamento, atribui a ele uma natureza dócil e de boa vontade. “O bom senso ou o senso comum
naturais, são, pois, tomados como a
determinação do pensamento puro”. (DELEUZE, 2006b, p. 194). O filósofo, a
partir da imagem do pensamento, afirma que o pensador quer o verdadeiro, pois é
da natureza do pensar amar a verdade. Assim, de forma premeditada, a imagem do
pensamento determina a própria busca do pensador: ele, enquanto pensador, está
determinado a buscar o verdadeiro.
Deleuze
nos convida a duvidar desta boa natureza do pensamento, ou seja, desta imagem
do pensamento presente na própria Filosofia:
Quando a filosofia encontra seu
pressuposto numa imagem do pensamento que pretende valer de direito, não
podemos, então, contentar-nos em opor-lhes fatos contrários. É preciso levar a
discussão para o plano de direito e saber se esta imagem não trai a própria essência do
pensamento como pensamento puro. (DELEUZE, 2006b, p.194).
Em seu livro Proust e os signos, Deleuze diz que Proust “tocou no essencial
quando afirmou que “as verdades permanecem arbitrárias e abstratas enquanto se
fundam na boa vontade do pensar. (DELEUZE, 2003, p. 89). A própria palavra “filósofo” já revela em si mesma esta
arbitrariedade. Inversamente do que muitos pensam, a palavra amigo revela uma fraqueza: os amigos buscam se afastar
dos conflitos de ideias; eles se afirmam a partir do próprio convencionalismo,
pois uma exposição de suas diferenças
poderia abalar a própria essência da amizade que os une. Todos os amigos
parecem afirmar um certo acordo de significações, e se tal acordo não se estabelecer,
fatalmente a amizade será de alguma forma abalada em sua própria estrutura.
Assim, a amizade se estabelece, antes de tudo, no convencionalismo de opiniões
e ideias. Tanto a Filosofia quanto a amizade, diz Proust, se distanciam da
busca da verdade. De acordo com Deleuze: “Sem algo que nos force a pensar, sem
algo que violente o pensamento, este nada significa. “Mais importante do que o
pensamento é o que ‘dá a pensar’; mais importante do que o filósofo é o poeta”.
(Deleuze, 2003, p. 89). É somente a partir dos afectos, ou seja, dos encontros,
que podemos ir além das nossas próprias opiniões e limites. Afastados daquilo que nos movimenta, não
podemos sair do campo dos determinismos inteligíveis da representação ou da
base identitária de um “eu” psicológico.
Percebe-se que o pensamento como boa
vontade não abre espaço para a criação. O ato criativo se faz sempre a partir
de um encontro, de algo que involuntariamente nos desloca e nos afeta,
desestabilizando nossas próprias
certezas, abrindo em nós um espaço para o impensável do próprio pensar. Nossa
educação escolar, de forma geral, parece desconhecer o valor do encontro, do
involuntário, dos afectos e dos signos que nos impelem a pensar. Ao contrário,
parece reconhecer apenas as verdades aprendidas pela representação ou pela
recognição que têm como fundamento apenas
imagens e semelhanças com
algo já-conhecido, um já-pensado, com um
saber já-pronto e acabado.
O problema, porém, reside no fato de que terminamos
por confundir o “reconhecer” com o “pensar”. Ora, o pensamento não tem uma
função meramente recognitiva; aliás, ele não tem jamais tal função – se o
tomamos em seu aspecto criativo [...]. Somente o pensamento, enquanto potência
criadora, pode romper definitivamente com a representação e a recognição e
apreender as coisas em sua singularidade, em sua diferença essencial. (SCHÖPKE,
2012).
O modelo pedagógico tradicional é
efeito e resultado de uma “imagem do pensamento” que se afirmou na própria
tradição filosófica. Tal modelo se estabeleceu na afirmação de um pensamento
que, indiferente a toda forma de devir, buscou a certeza do permanente, ou
seja, na determinação da forma, da substância ou ainda do sujeito do conhecimento. Contrariamente a
esta tradição, Deleuze afirma uma outra forma de aprendizado não baseada nas
recognições ou nas representações comuns à Filosofia. Segundo Deleuze, o que o
filósofo
postula como universalmente
reconhecido é somente o que significa pensar, ser e eu, quer dizer, não isto ou
aquilo, mas a forma da representação ou da recognição [...]. É porque todo
mundo pensa naturalmente que se presume
que todo mundo saiba implicitamente o
que quer dizer pensar. A forma mais geral da representação está, pois, no
elemento de um senso comum como natureza reta e boa vontade (Eudóxio e
ortodoxia). O pressuposto implícito da Filosofia encontra-se no senso comum
como cogitatio natura universalis, a
partir do qual a Filosofia pode ter seu ponto de partida. (DELEUZE, 2006b,
pp.191-192).
Para
Deleuze, aprender não se reduz às verdades apreendidas pela inteligência por
meio do uso comum das faculdades. Muito mais do que isso, aprender diz respeito
a chegar ao limite dessas mesmas faculdades: percepção, memória, imaginação,
inteligência e pensamento podem simplesmente estar atuando de forma voluntária,
dentro de uma zona de normalidade e conforto.
Ou seja, somente quando essas faculdades
se veem diante do encontro com o diferente e com o inusitado gerados a
partir dos signos (afectos) é que elas
podem ir além do seu uso comum. Por isso, Deleuze escreve: “ Há sempre a
violência de um signo que nos força a pensar, que nos tira a paz. (DELEUZE,
2003).
Segundo Deleuze, o mundo não é algo
dado, mas sim, algo a ser decifrado e decifrá-lo é um dom. (DELEUZE, 2003, p.
25). E não há outro caminho para aprendermos a decifrá-lo a não ser pelos
encontros. Porém, estes encontros podem vir carregados de crenças que, de certa
forma, nos distanciam do conhecimento. Como vimos, um afecto é um signo. Uma marca, um efeito que pode ter vários
sentidos. “Aprender diz respeito essencialmente aos signos”, nos diz Deleuze.
Toda aprendizado é um decifração de signos. Não há aprendizado que não passe
por este processo de significação, pelo
ato de capturar um signo, de apreender um signo:
Nunca se sabe como uma pessoa aprende;
mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo
tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. Quem sabe como um
estudante pode tornar-se repentinamente “bom em latim”, que signos (amorosos,
ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviram de aprendizado? (DELEUZE, 2003, p. 21).
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